Páginas

08/08/2012


Trova do vento que passa

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de sevidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

Manuel Alegre

Biografia
Manuel Alegre de Melo Duarte nasceu a 12 de Maio de 1936 em Águeda. Estudou Direito na Universidade de Coimbra, onde foi um activo dirigente estudantil. Apoiou a candidatura do General Humberto Delgado. Foi fundador do CITAC – Centro de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra, membro do TEUC – Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra, campeão nacional de natação e atleta internacional da Associação Académica de Coimbra. Dirigiu o jornal A Briosa, foi redactor da revista Vértice e colaborador de Via Latina.
A sua tomada de posição sobre a ditadura e a guerra colonial levam o regime de Salazar a chamá-lo para o serviço militar em 1961, sendo colocado nos Açores, onde tenta uma ocupação da ilha de S. Miguel, com Melo Antunes. Em 1962 é mobilizado para Angola, onde dirige uma tentativa pioneira de revolta militar. É preso pela PIDE em Luanda, em 1963, durante 6 meses. Na cadeia conhece escritores angolanos como Luandino Vieira, António Jacinto e António Cardoso. Colocado com residência fixa em Coimbra, acaba por passar à clandestinidade e sair para o exílio em 1964.
Passa dez anos exilado em Argel, onde é dirigente da Frente Patriótica de Libertação Nacional. Aos microfones da emissora A Voz da Liberdade, a sua voz converte-se num símbolo de resistência e liberdade. Entretanto, os seus dois primeiros livros, Praça da Canção(1965) e O Canto e as Armas (1967) são apreendidos pela censura, mas passam de mão em mão em cópias clandestinas, manuscritas ou dactilografadas. Poemas seus, cantados, entre outros, por Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e Luís Cília, tornam-se emblemáticos da luta pela liberdade. Regressa finalmente a Portugal em 2 de Maio de 1974, dias após o 25 de Abril.
Entra no Partido Socialista onde, ao lado de Mário Soares, promove as grandes mobilizações populares que permitem a consolidação da democracia e a aprovação da Constituição de 1976, de cujo preâmbulo é redactor.
Deputado por Coimbra em todas as eleições desde 1975 até 2002 e por Lisboa a partir de 2002, participa no I Governo Constitucional formado pelo Partido Socialista. Dirigente histórico do PS desde 1974, é Vice-Presidente da Assembleia da República desde 1995 e é membro do Conselho de Estado (de 1996 e 2002 e de novo em 2005). É candidato a Secretário-geral do PS em 2004, naquele que foi o mais participado Congresso partidário de sempre.
Em 2005 candidatou-se à Presidência da República, como independente e apoiado por cidadãos, tendo obtido mais de 1 milhão de votos nas eleições presidenciais de 22 de Janeiro de 2006, ficando em segundo lugar e à frente de Mário Soares, o candidato então apoiado pelo PS.
Em 23 de Julho de 2009 despediu-se do lugar de Deputado, que ocupou durante 34 anos e que deixou por vontade própria nas legislativas de Setembro. Foi reeleito para o Conselho de Estado em Novembro de 2009.
É sócio correspondente da Classe de Letras da Academia das Ciências, eleito em Março de 2005.
Em Abril de 2010, a Universidade de Pádua inaugura a Cátedra Manuel Alegre, destinada ao estudo da Língua, Literatura e Cultura Portuguesas.
Tem edições da sua obra em italiano, espanhol, alemão, catalão, francês, romeno e russo.


Canção tão simples

Quem poderá domar os cavalos do vento
quem poderá domar este tropel
do pensamento
à flor da pele?

Quem poderá calar a voz do sino triste
que diz por dentro do que não se diz
a fúria em riste
do meu país?

Quem poderá proibir estas letras de chuva
que gota a gota escrevem nas vidraças
pátria viúva
a dor que passa?

Quem poderá prender os dedos farpas
que dentro da canção fazem das brisas
as armas harpas
que são precisas?
Manuel Alegre



Dois e dois são quatro

Como dois e dois são quatro
          sei que a vida vale a pena
          embora o pão seja caro
          e a liberdade pequena 

          Como teus olhos são claros
          e a tua pele, morena

          como é azul o oceano
          e a lagoa, serena 

          como um tempo de alegria
          por trás do terror me acena 

          e a noite carrega o dia
          no seu colo de açucena 

          - sei que dois e dois são quatro
          sei que a vida vale a pena 

          mesmo que o pão seja caro
          e a liberdade, pequena.

(Ferreira Gullar)


17/05/2012


AMAR

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
Mais este e aquele, o outro e a toda gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disse que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar.
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que eu saiba me perder... pra me encontrar...

(Florbela Spanca)

25/03/2012




João e Maria - Chico Buarque 
com voz de Osvaldo Montenegro

Agora eu era o rei
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cawboy era você além das outras tres
Eu enfrentava os batalhões, os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque e ensaiava um rock para as matinês

Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juíz
E pela minha lei a gente era obrigado a ser feliz
E você era princesa que eu quiz coroar
Era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país
Não , não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu peão,o seu bicho preferido
Vem, me dê a mão, a gente agora ja não tinha medo
No tempo da maldade acho que a gente nem era nascido

Agora era fatal,
Que o faz de conta terminasse assim
Pra la deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim?








06/02/2012



Sou um Caso Perdido – Mario Benedetti

Por fim um crítico sagaz revelou
(eu já sabia que iam descobrir)
que nos meus contos sou parcial
e tangencialmente apela
que assuma a neutralidade
como qualquer intelectual que se respeite
creio que tem razão
sou parcial
disto não tem dúvida
mais ainda eu diria que um parcial irrecuperável
caso perdido enfim
já que por mais esforço que faça
nunca poderei chegar a ser neutro
em vários países deste continente
especialistas destacados
fizeram o possível e o impossível
para curar-me da parcialidade
por exemplo na biblioteca nacional do meu país
ordenaram o expurgo parcial
dos meus livros parciais
na Argentina me deram quarenta e oito horas
(e senão me matavam) para que me fosse
com minha parcialidade nos ombros
por último no peru isolaram minha parcialidade
e a mim me deportaram
de ter sido neutro
não teria necessitado
essas terapias intensivas
porém que se vai fazer
sou parcial
incuravelmente parcial
e mesmo que possa soar um pouco estranho
totalmente
parcial
já sei
isso significa que não poderia aspirar
a tantíssimas honras e reputações
e preces e dignidades
que o mundo reserva para os intelectuais
que se respeitam
quer dizer para os neutros
com um agravante
como cada vez existem menos neutros
as distinções se dividem
entre pouquíssimos
além disso e a partir
das minhas confessas limitações
devo reconhecer que a esses poucos neutros
tenho certa admiração
ou melhor lhes reservo certo assombro
já que na realidade é necessário uma têmpera de aço
para se manter neutro diante de episódios como
girón
tlatelolco
trelew
pando
la moneda
é claro que a gente
e talvez seja isto o que o crítico queria me dizer
poderia ser parcial na vida privada
e neutro nas belas-letras
digamos indignar-se contra Pinochet
durante a insônia
e escrever contos diurnos
sobre a atlântida
não é má ideia
e lógico
tem a vantagem
de que por um lado
a gente tem conflitos de consciência
e isso sempre representa
um bom nutrimento para a arte
e por outro não deixa flancos para que o fustigue
a imprensa burguesa e/ou o neutro
não é má ideia
mas
já me vejo descobrindo ou imaginando
no continente submerso
a existência de oprimidos e opressores
parciais e neutros
torturados e verdugos
ou seja a mesma confusão
cuba sim ianques não
dos continentes não submergidos
de modo que
como parece que não tenho remédio
e estou definitivamente perdido
para a frutífera neutralidade
o mais provável é que continue escrevendo
contos não neutros
e poemas e ensaios e canções e novelas não neutras
mas aviso que será assim
mesmo que não tratem de torturas e prisões
ou outros tópicos que ao que parece
tornam-se insuportáveis para os neutros
será assim mesmo que tratem de borboletas e nuvens
e duendes e peixinhos.

Dia Branco - Geraldo Azevedo

01/02/2012

Pequeñas lecciones de erotismo ( Gioconda Belli)



I
Recorrer un cuerpo en su extensión de vela
Es dar la vuelta al mundo
Atravesar sin brújula la rosa de los vientos
Islas golfos penínsulas diques de aguas embravecidas
No es tarea fácil - si placentera -
No creas hacerlo en un día o noche de sábanas explayadas
Hay secretos en los poros para llenar muchas lunas.
II
El cuerpo es carta astral en lenguaje cifrado
Encuentras un astro y quizá deberás empezar
Corregir el rumbo cuando nube huracán o aullido
profundo
Te pongan estremecimientos
Cuenco de la mano que no sospechaste.
III
Repasa muchas veces una extensión
Encuentra el lago de los nenúfares
Acaricia con tu ancla el centro del lirio
Sumérgete ahógate distiéndete
No te niegues el olor la sal el azúcar
Los vientos profundos cúmulos nimbus de los pulmones
Niebla en el cerebro
Temblor de las piernas
Maremoto adormecido de los besos.
IV
Instálate en el humus sin miedo al desgaste sin prisa
No quieras alcanzar la cima
Retrasa la puerta del paraíso
Acuna tu ángel caído revuélvele la espesa cabellera con la
Espada de fuego usurpada
Muerde la manzana.
18
Gioconda Belli
V
Huele
Duele
Intercambia miradas saliva imprégnate
Da vueltas imprime sollozos piel que se escurre
Pie hallazgo al final de la pierna
Persíguelo busca secreto del paso forma del talón
Arco del andar bahías formando arqueado caminar
Gústalos.
VI
Escucha caracola del oído
Como gime la humedad
Lóbulo que se acerca al labio sonido de la respiración
Poros que se alzan formando diminutas montañas
Sensación estremecida de piel insurrecta al tacto
Suave puente nuca desciende al mar pecho
Marea del corazón susúrrale
Encuentra la gruta del agua.
VII
Traspasa la tierra del fuego la buena esperanza
navega loco en la juntura de los océanos
Cruza las algas ármate de corales ulula gime
Emerge con la rama de olivo llora socavando ternuras ocultas
Desnuda miradas de asombro
Despeña el sextante desde lo alto de la pestaña
Arquea las cejas abre ventanas de la nariz.
VIII
Aspira suspira
Muérete un poco
Dulce lentamente muérete
Agoniza contra la pupila extiende el goce
Dobla el mástil hincha las velas
Navega dobla hacia Venus
estrella de la mañana
- el mar como un vasto cristal azogado -
duérmete náufrago.

25/01/2012




O vento na ilha
Pablo Neruda

O vento é um cavalo
ouve como ele corre
pelo mar, pelo céu.

Quer me levar: escuta
como percorre o mundo
para me levar longe.

Esconde-me em teus braços
nesta noite tão erma,
enquanto a chuva rompe
contra o mar e a terra
a boca inumerável.

Escuta como o vento me chama galopando
para me levar longe.

Tua fronte na minha,
tua boca na minha,
atados nossos corpos
ao amor que nos queima,
deixa que o vento passe
sem me poder levar.

Deixa que o vento corra
coroado de espuma,
que me chame e me busque
galopando na sombra,
enquanto eu, mergulhado
nos teus imensos olhos
por esta noite imensa
descansarei, meu amor.

24/01/2012

Huelga / Gioconda Belli




Quiero una huelga donde vayamos todos.
Una huelga de brazos, de piernas, de cabellos,
una huelga naciendo en cada cuerpo.
Quiero una huelga
de obreros de palomas
de choferes de flores
de técnicos de niños
de médicos de mujeres.
Quiero una huelga grande,
que hasta el amor alcance.
Una huelga donde todo se detenga,
el reloj las fábricas
el plantel los colegios
el bus los hospitales
la carretera los puertos.
Una huelga de ojos, de manos y de besos.
Una huelga donde respirar no sea permitido,
una huelga donde nazca el silencio
para oír los pasos del tirano que se marcha.


México 1976



 Poeta e revolucionária, Gioconda Belli funde o erótico ao político, o verbo e o fogo com a autoridade de quem já conquistou o prêmio literário Casa das Américas (em 1978) — um dos mais importantes em língua espanhola — e militou na Força Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) que derrubou o ditador Anastacio Somoza, em 1979, interrompendo a dinastia que dominou a Nicarágua por 43 anos.
Em duas palavras, sofrimento e gozo. Daí a fascinação que a personagem Lavínia, uma arquiteta recém-formada na Europa que vai trabalhar em Manágua, nos provoca. Ela é uma espécie de alter ego da autora, que se bacharelou em Madri. Lavínia acaba cedendo aos ideais da luta armada, ajuda a construir uma Nicarágua mais livre e seduz com seu heroísmo libertário.
Agora busco A mulher habitada para reler, pois não tenho anotado a origem do livro, que não consta do registro de minha biblioteca pessoal.
Gioconda Belli nasceu em Manágua, Nicarágua em 9 de dezembro de 1948. É autora de uma importante obra poética de reconhecido prestígio internacional. Entre a sua poesia, publicada em sete países, destacam-se: Sobre la Grama (Prémio Mariano Fiallos Gil, 1974), Línea de Fuego (Prémio Casa de las Américas, 1978), Truenos y Arco Iris (1982), Amor Insurrecto (1984), DE lá Costilla de Eva (1986), El Ojo de la Mujer (1990), Apogeo (1997) e Mi Íntima Multitud (Prémio Internacional Generación de 27, em 2003). O seu primeiro romance, La Mujer Habitada (1988), foi traduzido para onze idiomas com enorme êxito, especialmente na Alemanha, onde superou um milhão de exemplares vendidos e obteve o Prémio dos Bibliotecários, Editores e Livreiros para o Romance Político do Ano em 1989, além do Prémio Anna Seghers da Academia das Artes. É ainda autora dos romances Sofía de los Presagios (1990) e Waslala (1996), do conto inafantil El Taller de las Mariposas (1992) e de El País Bajo mi Piel (2001), o seu testemunho-memória do período sandinista. Desde 2004, Gioconda Belli é membro da Academia Nicaraguense da Língua. Publicada pelas mais prestigiadas editoras do mundo, Gioconda Belli vive, desde 1990, na Califórnia.





22/01/2012

De que serve a bondade?


Bertold Brecht

1
De que serve a bondade
Se os bons são imediatamente liquidados,ou são liquidados
Aqueles para os quais eles são bons?

De que serve a liberdade
Se os livres têm que viver entre os não-livres?

De que serve a razão
Se somente a desrazão consegue o alimento de que todos necessitam?

2
Em vez de serem apenas bons,esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne possível a bondade
Ou melhor:que a torne supérflua!

Em vez de serem apenas livres,esforcem-se
Para criar um estado de coisas que liberte a todos
E também o amor à liberdade
Torne supérfluo!

Em vez de serem apenas razoáveis,esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne a desrazão de um indivíduo
Um mau negócio.

Recomeçando novamente




SER,    PARECER 

      [Mia Couto] 


Entre o desejo de ser
e o receio de parecer
o tormento da hora cindida


Na desordem do sangue
a aventura de sermos nós
restitui-nos ao ser
que fazemos de conta que somos.