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01/08/2011



 
OS FORMAIS E O FRIO

 
Quem iria prever que o amor                        esse informal
se dedicaria a eles            tão formais
 
enquanto almoçavam pela primeira vez 
ela muito lenta e ele nem tanto 
e falavam com suspeita objetividade 
de grandes temas em dois volumes 
seu sorriso                         o dela
era como um agouro ou uma fábula 
seu olhar                             o dele                    notava 
como eram seus olhos                    os dela
porém suas palavras                       as dele 
não se davam conta dessas doces questões 
como sempre ou como quase sempre 
a política levou à cultura
 
de modo que à noite assistiram ao teatro 
sem tocar-se uma unha ou um botão 
nem mesmo uma fivela ou uma manga 
e como ao sair fazia muito frio
e ela não usava meias 
só sandálias por onde apareciam 
uns dedos muito brancos e indefesos 
foi preciso entrar num boteco
 
e já que o garçom demorava tanto 
optaram pela confidência 
extra seca e sem gelo por favor
quando chegaram na casa                            dela
e o frio estava nos lábios                               dele
de modo que ela                               fábula e agouro 
lhe deu refúgio e café instantâneos
 
uma hora apenas de biografia e saudades 
até que enfim sobreveio um silêncio 
como se sabe nesses casos é duro 
dizer algo que realmente não sobre
 
ele tentou                           só falta que eu durma aqui
e ela                      tentou porque você não fica
e ele                      não me diga duas vezes
e ela                      bem por que não fica
 
de maneira que ele ficou                               a princípio
a beijar sem usura seus pés frios                               os dela
depois ela beijou os seus lábios                   os dele
que a essa altura já não estavam tão frios
e assim por diante
enquanto os grandes temas
dormiam o sono que eles não dormiram.

(Mario benedeti-1920)

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